Lucas 23.56: O “Álibi” Adventista na Defesa da Guarda do Sábado no NT


Por Matheus Rosa



         Em debates sobre a guarda do sábado no Novo Testamento, quer pessoal quer virtualmente, os apologistas sabatistas costumam tirar do seu “coldre” apologético Lucas 23.56 para suprir a deficiência dos seus argumentos, tendo em vista que inexiste no NT um texto sequer em que Jesus ou os apóstolos citem o quarto mandamento do Decálogo, que ordena e ensina a guarda do sábado como dia de descanso, ou que o estabeleçam como norma para a Igreja, e disparar contra o oponente “antissabatista”. O objetivo disso é mostrar que, mesmo após a morte de Jesus, os seguidores de Jesus ainda guardavam o sábado.

         O pastor adventista Mark Finley argumenta a respeito de Lucas 23.56:

“Os seguidores mais próximos de Jesus estavam guardando o sábado depois de Sua morte? O que diz o relato de Lucas? ‘Descansaram no sábado, em obediência ao mandamento’ (verso 56). Eles não acreditavam que a morte de Jesus havia alterado o mandamento de nenhuma forma”.[1]

         Finley, porém, apenas repete em essência o que Ellen G. White, a quem os adventistas do sétimo dia creditam o dom de profecia, declarou em um de seus escritos ditos inspirados:

“Os discípulos descansaram no sábado, entristecidos pela morte de seu Senhor, enquanto Jesus, o Rei da glória, jazia no túmulo” (Primeiros Escritos, p. 181).

         Ellen White foi “além do que está escrito” (1Co 4.6) e afirmou que o próprio Senhor Jesus guardou o sábado enquanto o Seu corpo estava depositado na sepultura:

“Jesus descansou, afinal. Findara o longo dia de vergonha e tortura. Ao introduzirem os derradeiros raios do sol poente o dia do sábado, o Filho de Deus estava em repouso, no sepulcro de José. Concluída Sua obra, as mãos cruzadas em paz, descansava durante as sagradas horas do sábado” (O Desejado de Todas as Nações, p. 769).

         Embora em nenhuma parte do NT é dito que Jesus guardou o sábado no sepulcro, essa crença adventista é refletida, inclusive, na sua hinódia, como podemos ver no hino 530 do Hinário Adventista do Sétimo Dia, “O Sábado Chegou”, transcrito abaixo:

Esta hora de harmonia
Lembra o Deus que nos salvou;
Cristo lá na tumba fria,
Neste dia descansou.
És bem-vindo, és bem-vindo,
Memorial da redenção!
És bem-vindo, és bem-vindo,
Memorial da redenção![2]

         Em Lucas 23.56, o evangelista descreve que as santas mulheres “no sábado, repousaram, conforme o mandamento”, numa clara referência a Êxodo 20.8-11. O incidente de fato aconteceu imediatamente após a crucificação e morte de Cristo. Esses detalhes são sutil e habilmente manipulados pelos adventistas para fazer com que o NT dê a sua sanção à guarda do sábado na Nova Aliança. Mas o argumento sabatista desfalece por si só quando analisado o contexto religioso em que os primeiros seguidores de Jesus estavam inseridos.

         Os primeiros cristãos eram todos judeus. A figura do templo estava muito presente na vida da comunidade cristã em seus primórdios (Lc 24.53). A frequência regular dos cristãos primitivos ao templo (At 3.1) e o seu comprometimento com as tradições religiosas judaicas (At 20.16; 21.26) indica o caráter essencialmente judaico da fé da Igreja nesse período inicial. Além disso, demorou-se algum tempo para que os cristãos entendessem corretamente o que estava envolvido com a morte de Jesus e que a lei de Moisés foi abolida na cruz do Calvário (2Co 3.7-14; Ef 2.15; Hb 7.18,19), incluindo o preceito do sábado (Cl 2.16,17). Dez dias após a ascensão do Cristo ressurreto ao céu, por exemplo, os discípulos estavam celebrando a Festa de Pentecostes (At 2.1), que ocorria 50 dias após a Páscoa (Lv 23.15-21). Apenas por volta de 50 d.C., no Concílio de Jerusalém, que a relação do cristão com a lei do AT foi formalmente definida (At 15).

         A literatura adventista segue essa mesma linha em defender que a observância de certos ritos judaicos mesmo após a morte e ressurreição de Cristo se deve à imaturidade do conhecimento dos cristãos primitivos sobre a sua relação com a lei, embora, nesse caso, a limitem ao seu aspecto cerimonial baseado em sua visão quadripartida da lei de Deus dada a Israel por intermédio de Moisés.

         A Lição da Escola Sabatina, do 3.º trimestre de 2010, por exemplo, descreve a relação dos primeiros cristãos com os preceitos cerimoniais da lei mosaica:

“Todos os primeiros conversos para o cristianismo eram judeus, e o Novo Testamento não dá nenhuma indicação de que lhes tenha sido pedido que abandonassem a prática da circuncisão ou ignorassem os festivais judeus” (grifo acrescentado).[3]

         Wilson Paroschi, pastor adventista, doutor em Teologia, com especialização em Novo Testamento, e professor do Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP), frisa que esse entendimento veio com o tempo, apesar das resistências dentro da própria comunidade cristã:

“Em outras palavras, embora talvez muitos cristãos judeus de origem hebraica ainda estivessem demasiado apegados ao templo e a outras práticas cerimoniais (At 3:1; 15:1, 5; 21:17-24), achando difícil abandoná-las (Gl 5:2-4; Hb 5:11-14), Estevão e talvez os demais judeus helenistas cristãos logo entenderam que a morte de Jesus significava o fim de todo o sistema cerimonial do templo” (grifo acrescentado).[4]

         A profetisa adventista Ellen White, por sua vez, corrobora com todas essas publicações adventistas no que tange a esse entendimento tardio:

“Os judeus se haviam sempre orgulhado de seu cerimonial de instituição divina; e muitos dos que se haviam convertido à fé de Cristo ainda sentiam que uma vez que Deus havia claramente esboçado a forma hebréia de adoração, era pouco provável que Ele tivesse autorizado uma mudança em quaisquer de suas especificações. Insistiam em que as leis e cerimônias judaicas deviam ser incorporadas aos ritos da religião cristã. Eram tardos em discernir que todas as ofertas sacrificais não tinham senão prefigurado a morte do Filho de Deus, em que o tipo encontrou o antítipo, depois do que os ritos e cerimônia da dispensação mosaica não mais deviam perdurar” (Atos dos Apóstolos, p. 189).

         O entendimento tardio dos primeiros cristãos sobre a sua relação com a lei de Moisés explica o fato de as fiéis seguidoras de Cristo terem guardado o sábado imediatamente após o sepultamento do corpo do Senhor. Convém ressaltar que o entendimento limitado dos primeiros cristãos não se restringia somente à lei, mas também se estendia, por exemplo, a missão do Messias prometido nas Escrituras. Como os judeus de sua época, os discípulos de Jesus acreditavam que a vinda do Messias significava a libertação de Israel do jugo romano e a instauração do Reino de Deus na Terra (Lc 24.21; cf. At 1.6), ignorando que o ministério do Messias está dividido em duas fases: 1.ª) Como Servo Sofredor (Is 53; cf. Mt 1.21); e 2.ª) Como Rei glorioso (Dn 7.13,14;  cf. Mt 24.30; Ap 1.7; 19.11-16). Somente após a ressurreição de Cristo que eles compreenderam melhor a natureza da função desempenhada pelo Messias em Sua primeira vinda (Lc 24.25-27). Se os adventistas se valem de Lucas 23.56 para alegarem que o sábado deve ser normativamente guardado na Nova Aliança, deveriam observar a Festa de Pentecostes, celebrada apenas 10 dias após a ascensão do Senhor Jesus ao céu, para serem coerentes com o seu argumento.

         Que a compreensão dos cristãos primitivos avançou quanto a questão da guarda de dias fica claro ao analisar as epístolas de Romanos, Gálatas e Colossenses. Para os cristãos judeus, o apóstolo Paulo estabeleceu tanto a guarda de dias como a observância das leis dietéticas do AT como mera opção pessoal (Rm 14.5,6), tendo em vista que o sábado integra a identidade cultural dos judeus até hoje; agora, para os gentios convertidos a Cristo, a guarda de dias se constitui num retrocesso espiritual: “Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós que haja eu trabalhado em vão para convosco” (Gl 4.10,11; itálico acrescentado). Paulo chegou a classificar a guarda de dias como “princípios elementares, fracos e sem poder” (Gl 4.9, NVI). O apóstolo define o sábado juntamente com as festividades judaicas anuais e mensais como sombras: “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo” (Cl 2.16,17). A lei contém “a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das coisas” (Hb 10.1; itálico acrescentado). A sombra reflete de modo parcial a realidade e perde o seu lugar quando a realidade o assume.

         Outra alegação levantada por alguns apologistas sabatistas é que esse evento foi registrado 30 anos após a ressurreição do Senhor Jesus. Porém, Lucas apenas exercendo o seu papel de historiador para relatar os fatos que se passaram durante a vida e ministério terrestres de Cristo para Teófilo, o destinatário do livro. Esse é o objetivo do terceiro Evangelho (Lc 1.1-4).

         Logo, os argumentos construídos pelos sabatistas em torno de Lucas 23.56 para validar a guarda do sábado no NT são insuficientes e falaciosos, pois não levam em conta o contexto imediato e religioso em que os discípulos de Jesus estavam inseridos.

------------------------------------------------------------------------------------------------------

Notas

[1] FINLEY, Mark A. Tempo de Esperança – 24 horas para você renovar suas energias. 1. ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2009, p. 40.
[2] Hinário Adventista do Sétimo Dia. 6. ed. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010.
[3] NEUFELD, Don F. Judeus e Gentios. Lição da Escola Sabatina – Adultos – Professor, Tatuí, n. 461, p. 16, jul.—set. 2010.
[4] PAROSCHI, Wilson. O ministério de Estevão. Lição da Escola Sabatina – Adultos – Professor, Tatuí, n. 493, p. 47,  jul.—set. 2018.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ellen G. White e os 144.000

Ellen G. White e Joseph Smith Jr.: Semelhança como Água e Açúcar

Os “Dois Lagos de Fogo” de Leandro Quadros