Tiago 2.10: Um “Tiro no Pé” do Adventismo


 Por Matheus Rosa




      Uma das regras formais da hermenêutica é a análise do contexto textual em que está situado um texto para melhor entendimento deste. A compreensão do contexto histórico, cultural e social, caso disponíveis para estudo, também são muito importantes.  Embora aparentemente simples e desnecessário, é essencial para evitar interpretações errôneas e verdadeiras eisegeses (ver no texto o que não está nele), ou, como preferirem, “exejegues”.

      A regra deve ser aplicada também a Tiago 2.10, que diz: “Porque qualquer que guardar toda a lei e tropeça em um só ponto tornou-se culpado de todos”. Esse texto é usado pelos adventistas do sétimo dia para defender a tese de que a não-observância do quarto mandamento do Decálogo, que ordena a guarda do sábado (Êx 20.8-11; Dt 5.12-15), significa a quebra de todos outros nove mandamentos do mesmo código legal. É claro, tudo por causa do sábado! Tal argumento parte do pressuposto de que “lei” em Tiago 2.10 é uma referência aos Dez Mandamentos. Porém, para entendermos melhor o texto supracitado, vamos aos fatos!

      Para fazer uma exegese correta e sadia do texto, como já vimos anteriormente, é necessário conhecer os destinatários da Epístola de Tiago e o contexto textual de Tiago 2.10, ou seja, os versículos que antecedem e sucedem o texto em análise:

Quem são os destinatários da carta escrita por Tiago, o meio-irmão de Jesus? Encontramos essa informação na própria epístola, datada entre 45 e 49 d.C., que leva o seu nome: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que andam dispersas: saúde” (Tg 1.1; itálico acrescentado). A saudação que introduz o conteúdo da carta indica, juntamente com as menções da fé em Deus e de Abraão como “o nosso pai” em Tiago 2.19 e 21, que a epístola foi dirigida inicialmente a cristãos judeus que viviam fora da Palestina, possivelmente os primeiros convertidos em Jerusalém, que, após a morte de Estevão, foram dispersos pela perseguição (At 8.1) até a Fenícia, Chipre, Antioquia da Síria e além (At 11.19). Sendo o público-alvo de Tiago composto naturalmente de judeus, certamente os seus leitores não encontraram nenhuma dificuldade em entender o termo “lei” em Tiago 2.10. A Bíblia mostra que a lei é uma herança e privilégio especial do povo judeu (Rm 9.4).

Qual é o contexto imediato de Tiago 2.10? Será que Tiago estava tratando sobre a importância da guarda dos Dez Mandamentos, incluindo o mandamento do sábado? Uma leitura atenta dos vv. 1-9 de Tiago 2.10 nos fornece um sonoro “NÃO” como resposta! Tiago condena na seção da Epístola de Tiago composta pelos vv. 1-13 a acepção de pessoas que aqueles crentes judeus estavam fazendo em suas reuniões de adoração com os menos abastados. E no v. 8 ele cita o seguinte trecho de Levítico 19.18 para condenar essa atitude: “... amarás ao teu próximo como a ti mesmo...”, que ele mesmo denomina como “lei real” (a Nova Versão Internacional verte essa expressão como “lei do Reino”). Analisando Tiago 2.8, que cita um preceito da lei que está fora do Decálogo, fica claro que com “lei” Tiago tinha em mente toda a legislação mosaica, que contém 613 preceitos, e não somente os Dez Mandamentos, que somente introduzem esse código legislativo. O v. 9 revela o raciocínio de Tiago ao citar Levítico 19.18: Sendo que a lei de Moisés ordena o amor ao próximo como a si mesmo, fazer acepção de pessoas é uma atitude que contraria esse preceito da lei e, por isso, quem o fazia era condenado pela lei como transgressor. Então, é a partir daí que Tiago afirma no v. 10 como motivo do fato apresentado no versículo anterior que tropeçar em um só ponto da lei de Moisés significa ser culpado de violar toda a lei. O seu propósito não era exaltar a “lei de Deus”, que, na concepção adventista, restringe-se aos Dez Mandamentos, à semelhança do que fazem os adventistas do sétimo dia, mas condenar vigorosamente a acepção de pessoas que estava ocorrendo em comunidades cristãs formadas por judeus naquela época. Uma forte evidência disso é, como já apresentado, a citação do mandamento registrado em Levítico 19.18, que não integra o Decálogo.

      Não dados por satisfeitos com a explicação que está sendo proposta, os apologistas adventistas argumentarão: “Se Tiago não está se referindo somente aos Dez Mandamentos, por quê ele cita os 6° e 7° mandamentos da lei de Deus?”. Embora o argumento possa parecer sutil e confundir a mente de pessoas incautas, a resposta é muito simples: Tiago cita dois dos Dez Mandamentos assim como poderia citar qualquer outra parte do sistema mosaico! Na visão da Igreja do século I até o século XIII d.C., quando Tomás de Aquino criou a chamada “divisão da lei”, a lei consistia em um único pacote de leis, e não em leis divididas em lei moral, lei cerimonial, lei civil e leis de saúde (esta última categoria é peculiar à crença adventista somente). Na mente de Tiago (e dos apóstolos e de toda a Igreja até o século XIII d.C.), os Dez Mandamentos eram somente uma parte da lei de Moisés. A divisão da lei, por exemplo, em “lei de Deus” (os Dez Mandamentos escritos pelo dedo de Deus em duas tábuas de pedra e guardadas na arca da aliança) e “lei de Moisés” (o restante dos mandamentos dados por Deus e escritos por Moisés em um livro que encontrava-se posicionado ao lado da arca da aliança), feita por vários líderes adventistas nas décadas passadas, embora gradualmente abandonada devido à sua consistência exegética, era desconhecida, não somente ao povo de Deus do NT, como também ao povo de Deus do AT (Em Neemias 8.1 e 8, a lei é chamada tanto de “Lei de Moisés” como de “Lei de Deus”), pois a primeira expressão apenas mostra a origem divina da lei e a segunda aponta para Moisés como o mediador entre Deus e Israel na promulgação da lei.

      Tiago 2.10 está muito longe de validar a interpretação adventista eivada sobre a lei e o sábado.

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